Mil palavras... Um sentimento...
 
O meu homem não é o meu homem ou Dos não-retornados

O meu homem não é o meu homem ou Dos não-retornados

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Texto enviado pela nossa leitora: Catarina Martins. Foto: Marisa Silva

O meu homem não voltou. Veio apenas, em seu nome, um outro homem, preencher um lugar à mesa e à cama. Um outro, que não é o meu.

O meu homem não é o meu homem. É um misto de dureza e nada na cara. É um olhar vazio que não tem amanhã.

O meu homem é um corpo que me olha em silêncio, sem romantismos, sem palavras doces, sem a energia no olhar com que um dia me disse “vem comigo esconder-nos na duna”.

O meu homem é um rasto de sangue seco que nunca será limpo da testa, das rosáceas, dos cotovelos, da palma da mão que já não me dá.

O meu homem um dia possuiu-me… agora furta-me aos lençóis, esvaziado e oco e eu deixei que uma guerra medonha mo arrancasse como quem leva cabelos e dentes e tudo numa identidade que não volta.

O meu homem para quem me guardei anos…

[para aquele momento, ainda de véu, abençoados por Deus e longe do olhar fiscalizador  dos pais… com quem eu fiquei em segredo ali tão protegida… ali tão nós os dois…e à frente só futuro, só plenitude, só vida longa.]

O meu homem não vive. Sobrevive. E nós com ele. O meu homem foi pai… já não é, porque um pai é colo, é amor, é futebol em fintas com bolas e filhos entre as pernas e o meu homem, este meu homem, não tem nada disso.

E eu continuei de avental a limpar caras e narizes e queixos e rabos de garoto e na cozinha a fazer bolos para lhe dar a comer, sem que ele se aperceba das framboesas no topo.

E ele vem com as entranhas tatuadas de uma guerra de medos e dentes e mamas de escrava … de tudo sem nada … sem vida, sem alegria, sem compreensão. Apenas morte e corpos deitados abaixo. E cartas que não vinham de um homem que ia deixando de o ser.

E eu esperava primeiro dias, semanas, depois meses, depois anos. Nada anunciava na nossa vida e eu escrevia cartas falsas aos meus filhos que serpenteavam por entre as minhas saias sempre que um daqueles envelopes, escritos à noitinha, ao lume, chegava pela mão do carteiro a quem pagava o favor com corpo e lágrimas.

“Meus queridos filhos, penso em vocês todos os dias. Eu ando bem. Demoro já pouco mas assim que puder regresso para brincar convosco e estarmos todos juntos, em família”

As cartas traziam sublinhados a cores que os mais velhos foram estranhando (“o pai tem lápis de cor lá?”) que os filhos crescem e afinam… os meus afinavam todos os dias (“porque é que o pai diz sempre coisas parecidas?”) e os miúdos aninhavam-se em cobertores e em mim. E eu neles. A Vida toda ali. E o pai que não dizia nada.

Andava escondido em lama e ruminações.

Todos juntos em família

O meu homem agora não dorme… retorna todas as noites ao palco onde matou e viu morrer, onde minas assassinas rebentavam com mulheres, homens crianças. Gente. O meu homem afaga a cabeça com uma almofada que ainda tem folhas e terra e lama e pó. E não quer ouvir, não quer ouvir, não quer ouvir, nem sirenes, nem bombas, nem eu que o chamo, nem o nome que os filhos lhe dão … não quer ouvir tiros que confunde com crianças a chamar pela mãe, a meio da noite.

Todos juntos em família

António, agora não é do teu pai que fugimos. Desse, conseguimos sempre escapar para te abraçar ao domingo na casa da eira. Agora fugimos de algo que não nos deixam fintar, do qual não te queres esconder. Agora fugimos de anos que te arrancaram de nós, que te arrancaram de ti. Fugimos de uma guerra que te mata aos bocados mas que já te levou todo.

O meu homem não voltou. Veio apenas, em seu nome, um outro homem, preencher um lugar à mesa e à cama. Um outro, que não é o meu.

E este ano, António, são as nossas bodas de ouro. E vêm os netos, que são a tua cara.

Todos juntos em família…

6 Comments

  1. Luis

    A realidade nua e crua, para pais, esposas e filhos. Os que lá foram preparam o 25 Abril. Hoje, esses homens (14 anos de guerra) o que foi que a Pátria lhes deu.
    Esquecimento.

  2. António Faustino

    As lágrimas já correram pelo meu rosto,fêz-me recordar imagens do passado,que tento nunca esquecer.Não tenho muitas razões de queixa porque a minha missão não o exigia e graças a Deus fui e vim,mas muitos e alguns eram amigos não tiveram a mesma sorte.Gostei,e as lágrimas que derramei,fazem-me reviver todos os momentos passados os amigos que perdi e as saudades de pessoas com quem convivi durante esses 2 anos bem hajam

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